Era uma noite fria numa cidadezinha da grande Porto Alegre.
Cidadezinha na época. O vento forte perto da meia-noite nada queria dizer senão
que era inverno, e dos brabos. Noite perfeita sem luar. Perfeita para cometer
um crime, o primeiro desta natureza em minha curta carreira de bandido.
O alvo estava certo, uma residência quase em frente à
residência da mente criminosa por trás desta operação friamente – com relação
ao clima – calculada.
Seriamos só eu e meu mentor, meu tio e padrinho. Minha mãe
ficaria orgulhosa dos bons préstimos que o seu irmão, meu Godfather Bagual dava
para a formação de seu afilhado.
Não me recordo bem dos trajes do meu padrinho, do alto dos
seus 1,90m (ainda há controvérsias familiares sobre sua real altura) ele vestia
algo que realmente não me marcou, diferente da minha bota de borracha, daquelas
de chuva, e meu agasalho de algodão, com um capuz cuja cara eu tentava esconder
em vão. Minha roupa era cinza quase que como um ninja em formação. Eu usava uma
balaclava – popular “touca ninja” que de ninja não tem nada - de mesma cor,
arrisco a dizer que fora feita ou pela minha avó, mãe do meu padrinho, ou pela
minha bisavó, avó do meu padrinho.
Minha tia, esposa de meu padrinho odiava quando ele tinha
estas ideias estapafúrdias. Sim, éramos reincidentes. Certa vez ele, junto com minha tia e minha
irmã, nos levou ao seu trabalho, de madrugada para surrupiar duas, sim duas garrafas
de Pepsi-cola da geladeira do governo. Ele era funcionário público.
Fora a
primeira e única vez que vi, com a luz de uma lanterna, uma lebre.
Voltando ao crime, atravessamos a rua sob um vento
insuportável que, mesmo pra mim que adoro a brisa forte, estava assustador. A
rua estava vazia como se fosse uma cidade fantasma.
Confesso que não me recordo de como entramos no primeiro
portão. Aqueles portões de grades com lanças. Realmente minha memória me traiu
agora. Mas já dentro do terreno, só tínhamos uma maneira de cometer o furto que
era pulando o portão lateral, que da mesma forma que o portão frontal, era de
grades com lanças. Porém deste portão eu lembro bem, com dois lances de lanças,
uma a mais ou menos 60 cm do chão e outro mais alto, uns 2m. Ai que surge o
ladrão...de galinha.
Lembro bem que naquela época – bem como em todas as outras
fora quando joguei futebol amador – eu era gordinho. Gordinho porque jamais me
chamaria de gordo ou obeso.
Foi ali, naquele lugar, naquela noite fria e ventosa que eu
descobri que jamais seria do crime. Ao tentar escalar o portão, minha bota de
borracha furou em uma das muitas lanças do portão e fiquei pendurado a apenas
60 cm do chão. Na época eu tinha uns 10 anos e menos de 1,50m. A cena,
antológica, quase pos tudo a perder. Mas com uma clássica ajuda de meu
padrinho, me empurrando pela bunda, conseguimos adentrar no quintal da casa.
E como dois larápios, furtamos uns 4 Kg de laranja do pé
carregado que ficava nos fundos da casa vazia. Os donos possivelmente haviam
ido de férias para algum lugar mais quente ou mesmo pescar na praia – comum fazer
isto no inverno lá pelas bandas de Pinhal.
Mesmo eu fazendo barulho em excesso e gelado de frio e medo,
o cachorro do vizinho não conseguiu que nos descobrissem, mesmo que os
moradores da residência ao lado tenham acendido a luz para ver o que o vira-latas
estava latindo.
Voltamos, não me lembro como, e mesmo que eu tivesse feito
uma força involuntária não fomos pegos. E eu ainda me pergunto, com um sorriso
nos lábios, porque corri tamanho risco se nem de laranja eu gosto!
Mas eu sei porque...
Porque era com meu padrinho. Era o cara que gostava de
correr riscos necessários. Que infância eu teria se não tivesse pulado a casa
do vizinho para furtar as frutas, mesmo não gostando delas?
Que graça teria a minha vida se eu não pudesse rir de mim
mesmo e fazer meu padrinho rir, a família toda rir das nossas histórias?
Seja furtando refri, laranja, acampando, pescando ou
contando piadas velhas, sempre irei me lembrar de como tive momentos
maravilhosos com meu padrinho. Dos vários churrascos demorados que fazia até
das musiquinhas que ele cantava, e é claro, das putarias que sempre acabava com
as conversas mais sérias.
Desde que fui ao Rio Grande do Sul para me despedir de meu
padrinho, eu jamais tive um momento destes, de lembrar as coisas que fazíamos
juntos e das milhões de risadas que demos juntos. Um dia depois que cheguei lá,
ele resolveu que era hora de ele ir. Quando seu coração parou, o meu e o de
muita gente também o fez, mesmo que fosse por breves segundos.
Não terei mais as conversas gigantescas pelo telefone...
Não dói, juro que não dói, Dindo, mas a saudade é muito
grande. Não sinto que não te aproveitei ao máximo, eu sinto que você foi muito
antes do tempo.
Mas fazer o que?
O grande roubo foi você ter ido assim...
A saudade, quando não cabe dentro da gente, sai em forma de
lágrimas, como diria algum poeta por ai.
Sei que jamais serei um padrinho como tu foste pra mim.
Agora tentarei ser o melhor padrinho me espelhando em ti, mas mesmo assim, quem
ensinará meu filho a roubar laranja do vizinho?
Ainda sou aquele menino, fantasiado de pirata, sentado nos
teus ombros...
Esta estrada esta mais triste...
PS: Este talvez não seja o pior post do mundo, mas pra mim é o mais triste.
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